quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Literalmente, neste natal

Quando chegares, neste dezembro, será quase natal. Sem pinheiro, sem presépio, sem presentes. Sem festas no olhar, sem afagos nas mãos, sem tempo para ficar. Quando chegares trarás o coração ao ritmo da partida, a mala vai ficar semi-aberta no chão, indiferente às gavetas fechadas, cheias de roupas que já ninguém veste, com um cheiro misturado das estações. Vou subir as escadas dessa casa estranha como se reconhecesse cada degrau, adivinhar o perfil da serra através das persianas fechadas, a transparência da luz sobre uma nesga de mar, e vou sentir o frio agarrar-se à pele. Quando a porta de entrada deixar de estar sujeita a metáforas e for literalmente porta de saída, direi de mim para mim, no silêncio de um sorriso, que seja como for em breve será natal.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Contra-senso

A ausência pode ter a densidade de um corpo que deixa marcas de vazio no colchão. É também assim que se sente saudades de alguém. Disse-lhe ela.

sábado, 10 de outubro de 2009

Aconchego

Antes de me deitar embalo a memória, murmuro-lhe uma história fantástica com muita gente feliz, afago-lhe as pálpebras pesadas que me protegem do olhar. Só então me aconchego no silêncio da noite.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

(Des)Acordo ortográfico

Muito pouco nada são pétalas de uma gramática que desfolho, sentada na carruagem de metro, em frente da rapariga absorta que envia sms atrás de sms. Muito pouco nada muito pouco nada. Invariáveis, deixo cair os advérbios entre duas estações, um malmequer a desfazer-se entre os dedos revelaria a insensatez de quem se despenha no acaso. Gosto muito de cozinha chinesa, disseste. Falta pouco para a luz escorregar pela encosta da serra até ao mar, respondi. Nada se equivale se te dou o muito que é pouco e tu me dás o pouco que é muito. Pensei. Posso arrancar uma a uma todas as folhas da gramática, sem me preocupar com o futuro do acordo ortográfico.

sábado, 2 de maio de 2009

Caixas de memórias (2)

O belíssimo filme de Jorge Silva Melo sobre Bartolomeu Cid dos Santos, que foi projectado no cinema S. Jorge, na passada 5ª feira, no âmbito do Indie Lisboa 2009, levou-me a procurar o texto que escrevi em Maio de 2007, data da exposição Caixas de Memórias. O texto foi difundido, na altura, como nota de imprensa.
O título da exposição de Bartolomeu Cid dos Santos, na galeria Ratton, Caixas de Memórias, tem um duplo sentido, denotativo e simbólico. A maior parte das obras expostas são verdadeiras caixas, objectos utilitários que o artista subverte, desvia da sua finalidade, transforma em objecto outro, não deixando de questionar em tom provocatório o novo estatuto que adquirem: "Is this art?"
As caixas servem, por definição, para guardar objectos, ocultá-los, preservá-los. As caixas de Bartolomeu dos Santos abrem-se na transparência de uma face de vidro, revelam segredos guardados na memória. São caixas mágicas onde sorriem sereias aladas, pacientes Penélopes à espera de Ulisses. Nas imagens femininas transparece uma terna ironia de que encontramos eco nas alusões explícitas a Fernando Pessoa e ao seu heterónimo Ricardo Reis, seres de uma realidade mítica criada pela poesia. Estas figuras remetem para a viagem, para um mar que conduz a ilhas de prazer ou a portos seguros.
Predominam, em termos de quantidade, as caixas que desvendam memórias menos pacificadoras e que contêm uma amálgama de ruínas: pedaços de objectos devastados, estilhaços de espelhos, fragmentos ilegíveis de um passado que desconhecemos. Outras ainda transportam-nos para oceanos de perigos e batalhas, onde se inscrevem referências históricas alusivas a guerras e naufrágios.
Não é apenas "Under the surface" que nos revela tesouros submersos. Cada uma e, no seu conjunto, todas estas caixas e telas são flashes de uma narrativa maior, na qual individual e colectivo, Mito e História, ficção e realidade, morte e memória se entrelaçam em vida habitada por sonhos e pesadelos, corpos doces e destroços, barcos de viajantes-poetas e navios de guerra, muitas interrogações e algumas certezas.

Caixas de memórias

Em Maio de 2007, eu trabalhava na Galeria Ratton, em Lisboa. A 10 de Maio desse ano, inaugurou-se a exposição de Bartolomeu Cid dos Santos, Caixas de Memórias. Antes, tinha sido a azáfama da preparação e o prazer de descobrir aquela peças, primeiro através das fotografias que a Ana Viegas tirara no atelier do artista, em Tavira, depois a alegria de as ver e tocar ao desempacotá-las e transportá-las, à procura do espaço mais apropriado, da sequência que articulasse as narrativas que iamos adivinhando. Bartolomeu chegou por fim, imponente e frágil, sobrevivente de naufrágios e irradiando o prazer de estar vivo. Ouvi-lo, passo a passo, ao longo do itinerário da exposição, cruzar memórias pessoais, familiares e históricas, experiências vividas e sonhadas, materiais plásticos e poéticos, foi um privilégio que não estava previsto no meu contrato de trabalho. Desse encontro ficou-me a intensidade de uma cor, azul, a transbordar das caixas, que continham o mar, e da inquieta sabedoria de um homem-artista que nenhuma moldura continha.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Verde, não te quero verde

Caíram as flores da magnólia, como um corpo que tomba no chão. Se perde uma pétala, fica a flor amputada. Flor excessiva, não pode maquilhar as feridas, e é escasso o momento em que nos afronta na sua beleza sem falha. Agora é tempo da árvore quase se confundir com as outras árvores em volta, cobertos os troncos de folhas verdes. Magnólia verde, não te quero verde.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

As magnólias

Cresceram. As flores carnudas alastram nos ramos das jovens magnólias. Parece improvável que os troncos possam suportar a desproporção do cálice aberto, a voracidade das pétalas. A cor da rosa colada à carne é um desvio, um halo de candura.
Passo a passo, cerco as magnólias. Procuro, sem êxito, o ângulo para as fotografar na sua vitoriosa desmedida.    

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O dia em que começou a Primavera


Declaro solenemente, mesmo que não haja ninguém para me ouvir, que hoje, dia 11 de Fevereiro, começou a Primavera do ano de 2009.  Não quero saber se o início da minha Primavera não respeita o calendário oficial nem a minúcia das delicadas posições dos astros entre si. Sei, com o ritmo cardíaco a ganhar velocidade, que o Inverno acabou. Numa zona ainda em construção da cidade vi, ao começo da tarde, meia dúzia de magnólias muito jovens ostentarem as primeiras flores: enormes, cor-de-rosa, sem pudor.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Lugares


Nenhum lugar tem um valor absoluto. Sei que se pode sussurrar, através de ruelas, praças e pontes, «Que c'est triste Venise», na certeza do desamor sem remissão, e ao mesmo tempo sentirmo-nos apaziguados pela violência da beleza à beira da ruína.
Amo o Porto com o corpo inteiro, a memória debruçada sobre o Douro, a ponta dos dedos esticados quase a tocar a outra margem, o desejo de que o relógio pare, a noite nunca acabe e o Alfa pendular esqueça o trajecto de regresso a Lisboa.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

À deriva


                  Com a Teresa, a Zizas, o Luís Miguel por companhia

Uma amiga morreu. Outra amiga morreu. Ambas morreram de cancro. Um amigo morreu. Foi assassinado. Sempre viveu com um pé para cá e outro para lá de uma linha fluida a que se pode chamar limite. Entre segurança e medo, entre riso e terror, entre  ternura e sarcasmo. Fazem-me falta os amigos que morreram. A vida de cada um deles é uma narrativa diferente das outras, mas cruzam-se em mim. A minha história não seria a mesma se eles não participassem nela e não me tivessem transformado sem eu dar por isso. Eu não seria eu sem a presença distante da minha vizinha das casas geminadas onde vivemos na infância, sem o amor incondicional que resistiu ao carácter secreto da minha amiga,  ao afastamento da adolescência, à distância geográfica da idade adulta. Foi um amor sofrido, porque a escolhi para irmã e só muito mais tarde descobri que não é possível exigir aos afectos a reciprocidade de uma imagem no espelho. Eu não seria eu sem o constante zelo da minha outra amiga que morreu. As mágoas da orfandade transformou-as numa rede em que  baloiçávamos confiantes na atenção do seu olhar. Eu não seria eu sem as gargalhadas e a tristeza do meu amigo poeta, sem as palavras que ele disse, sem as palavras que escreveu. Sem eles eu não seria eu, porque foi neles que me reconheci na premência do amor, na constância da amizade, no desejo que espia o abismo. Os meus amigos vivem.       

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Cris(e)

Oiço as notícias na Antena 1, às duas horas da manhã. Nem sei se começo mal o dia ou se a minha noite de sono corre o risco de se perder. Crise, crise, crise. Não é consolo ser mundial, vai-se assim a esperança de fugir. Até agora, em português, a crise é um nome relativamente silencioso. Em francês, a palavra está grávida de revolta: des cris, des cris, des cris...

domingo, 25 de janeiro de 2009

Domingos


Há domingos em que se acorda já com o dia a meio e um sobressalto ao imaginar as horas que se interpõem entre o momento e a noite. Lá fora, alguém se esqueceu de acender a luz da manhã ou de enrolar o toldo de nuvens.  

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Ausência

Estes dias de inverno disparam flashes de luz fria que me cegam por instantes e te acordam em mim. Com os dedos, sacudo o sono dos olhos, espregiço-me por dentro das mangas do casaco, pressinto, entre todos os outros, os passos que se aproximam. Não sais do carro, não acenas do outro lado da rua, não me esperas à porta de um andar vazio. Não sorris, não me beijas, não dizes olá. Dir-se-ia que não estás aqui. Talvez só eu saiba que colado ao meu corpo caminha um outro corpo. Riu-me cada vez que os meus pés tropeçam nos teus pés, e só não caio porque os teus braços me seguram.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Epitáfio

Um envelope acolchoado com uma moldura vazia e uma frase que é um epitáfio chegaram à minha caixa do correio. O natal acalenta o ano moribundo, entre um sonho e uma fatia de bolo-rei é tempo de deglutir o luto do que podia ter sido. Paz à minha alma!