sábado, 2 de maio de 2009

Caixas de memórias (2)

O belíssimo filme de Jorge Silva Melo sobre Bartolomeu Cid dos Santos, que foi projectado no cinema S. Jorge, na passada 5ª feira, no âmbito do Indie Lisboa 2009, levou-me a procurar o texto que escrevi em Maio de 2007, data da exposição Caixas de Memórias. O texto foi difundido, na altura, como nota de imprensa.
O título da exposição de Bartolomeu Cid dos Santos, na galeria Ratton, Caixas de Memórias, tem um duplo sentido, denotativo e simbólico. A maior parte das obras expostas são verdadeiras caixas, objectos utilitários que o artista subverte, desvia da sua finalidade, transforma em objecto outro, não deixando de questionar em tom provocatório o novo estatuto que adquirem: "Is this art?"
As caixas servem, por definição, para guardar objectos, ocultá-los, preservá-los. As caixas de Bartolomeu dos Santos abrem-se na transparência de uma face de vidro, revelam segredos guardados na memória. São caixas mágicas onde sorriem sereias aladas, pacientes Penélopes à espera de Ulisses. Nas imagens femininas transparece uma terna ironia de que encontramos eco nas alusões explícitas a Fernando Pessoa e ao seu heterónimo Ricardo Reis, seres de uma realidade mítica criada pela poesia. Estas figuras remetem para a viagem, para um mar que conduz a ilhas de prazer ou a portos seguros.
Predominam, em termos de quantidade, as caixas que desvendam memórias menos pacificadoras e que contêm uma amálgama de ruínas: pedaços de objectos devastados, estilhaços de espelhos, fragmentos ilegíveis de um passado que desconhecemos. Outras ainda transportam-nos para oceanos de perigos e batalhas, onde se inscrevem referências históricas alusivas a guerras e naufrágios.
Não é apenas "Under the surface" que nos revela tesouros submersos. Cada uma e, no seu conjunto, todas estas caixas e telas são flashes de uma narrativa maior, na qual individual e colectivo, Mito e História, ficção e realidade, morte e memória se entrelaçam em vida habitada por sonhos e pesadelos, corpos doces e destroços, barcos de viajantes-poetas e navios de guerra, muitas interrogações e algumas certezas.

Caixas de memórias

Em Maio de 2007, eu trabalhava na Galeria Ratton, em Lisboa. A 10 de Maio desse ano, inaugurou-se a exposição de Bartolomeu Cid dos Santos, Caixas de Memórias. Antes, tinha sido a azáfama da preparação e o prazer de descobrir aquela peças, primeiro através das fotografias que a Ana Viegas tirara no atelier do artista, em Tavira, depois a alegria de as ver e tocar ao desempacotá-las e transportá-las, à procura do espaço mais apropriado, da sequência que articulasse as narrativas que iamos adivinhando. Bartolomeu chegou por fim, imponente e frágil, sobrevivente de naufrágios e irradiando o prazer de estar vivo. Ouvi-lo, passo a passo, ao longo do itinerário da exposição, cruzar memórias pessoais, familiares e históricas, experiências vividas e sonhadas, materiais plásticos e poéticos, foi um privilégio que não estava previsto no meu contrato de trabalho. Desse encontro ficou-me a intensidade de uma cor, azul, a transbordar das caixas, que continham o mar, e da inquieta sabedoria de um homem-artista que nenhuma moldura continha.