quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Curto-circuito

Em volta da palavra solidão há um círculo vermelho. Foi remetida para a clandestinidade, perdeu a dignidade, a aura romântica, deixou de ser a consequência de uma renúncia ao possível em nome do impossível. Cada sílaba da palavra solidão acende-se hoje, rastilho de misérias ocultas que incendeia a árvore de natal metálica plantada num ponto alto da cidade. Aqueles que em romaria se deslocam para observar a feérica oferenda publicitária atribuem o fogo a um curto-circuito.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Retalhos de narrativas por contar

O presente abre-se, dia após dia, como um espelho de memórias de afectos e desafectos, de sonhos e de feridas cobertas por uma pele fina. Essas imagens são retalhos de narrativas por contar. Que palavras despertam na ausência de um grão de voz, da concha de um ouvido mais ou menos atento? De que serve tirar uma radiografia à agenda com páginas em branco e horas amarrotadas por pisa-papéis de pedra? Perderam-se os calendários por onde alastravam manchas de monólogos que o eco fazia ressoar, ensurdecedores. Cresce ainda a nostalgia da inteireza do ser e do tempo em que o conceito era uma proclamação de vida, murmurada vezes sem conta: «Põe tudo quanto és/No mínimo que fazes». Esfaceladas as certezas, sobram algumas convicções e um instinto de sobrevivência que recusa transportar de casa em casa uma escrivaninha com gavetas esconsas, onde se amontoam, sem nexo, notas, mapas, cartas, fotografias, cartões de visita. Através da vidraça lança-se, por fim, o olhar intacto na lucidez dos desencontros.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Natal para reciclar

Acumulam-se pelos passeios da cidade, em volta de ecopontos atulhados, sacos de plástico com espinhas de bacalhau e ossos de perú misturados com as cascas dos objectos que trocámos no natal. A diversidade está no papel de embrulho. Oferecemos, sem saber, cebolas como penhor do nosso afecto. Derramam-se emoções à medida que as descascamos.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Pronomes impessoais

Dir-te-ei ainda que entre mim e ti precipitam-se os pronomes impessoais, que transformam em ruído a conjugação do verbo amar.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Fecho de contas 2008

Assim me despeço do que não chegou a ser,

no final do ano - o tempo que se escoou em surdina entre slogans da multidão,

nas despedidas sem o grão da voz ou uma vaga penumbra no olhar - um vislumbre de homens que não vestem e despem clandestinidades à medida, coçadas nos cotovelos de tanto usar,

no tempo das romãs - a revelação da exuberância dos bagos, a fome saciada,

hoje - estilhaços de futuro em rostos que não se confundem.

As pontas dos dedos, absortas na minúcia do gesto, aconchegam uns contra os outros os rebordos das peças do puzzle.

sábado, 19 de janeiro de 2008

O Tejo

Da minha casa, em Lisboa, não vejo o Tejo, mas adivinho com que humor amanhece.
Há dias em que se mantém distante, a luz pinta um céu azul puríssimo que os aviões riscam com traços brancos. Apetece sobrevoar a cidade, partir com os olhos a doerem da nitidez da imagem.
Há manhãs em que o rio se cansa de ser caudal e se liberta do leito, das margens e do cais. Imersa em neblina, chego à varanda como quem se apoxima da amurada de um barco, e navego no espaço, sem ver o horizonte, acompanhadada pelo espírito dos náufragos.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Os 100 nomes do amor

Ta'achchqa
Cair nos laços do amor, enamorar-se, deixar-se prender.
"Pergunto-me com espanto", nota Al-Mountanabbi (915-965) - literalmente aquele que quis ser profeta -, "como saberá morrer quem não deseja nada.". [...]


Ainda na ressaca do Natal, com o pretexto de trocar por géneros um "cheque oferta" FNAC, que lhe coube em sorte, o Francisco arrastou-me, no passado domingo, ao Colombo.
Hordas sonâmbulas deambulavam por corredores murados de vitrines que ofereciam, a preços de saldo, milhares de coisas mais ou menos inúteis. O dinheiro (ou a falta dele) não é nunca um problema: apresenta-se o mágico cartão de plástico, digitam-se quatro números (a tecnologia do chip já chegou a Portugal) e assim se aprofunda, sem angústia nem consciência, o endividamento das famílias. O crédito é a epidural de milhões de portugueses.
Pasmei com a quantidade de bébés cujo primeiro contacto com o mundo é o Centro Comercial (não, não é o Centro Paroquial). Transportados em carrinhos com espaços destinados a acomodar sacos volumosos, têm prioridade nos elevadores, não vá dar-se o caso de serem os pais gente de pouca fé e desistirem de levar os inocentes em peregrinação aos andares superiores da Catedral.
Senti-me tão deprimida após esta odisseia que, chegados finalmente ao local de destino, ofereci (cash!) a mim mesma o último CD da Vanessa da Mata e um livrinho surpreendente: Os 100 Nomes do Amor, de Malek Chebel (texto) e Lassaâd Métoui (caligrafia). Cito um excerto do texto da contracapa: "Os árabes têm 99 nomes para Alá, o Deus único, e 100 para o amor. Se uma tal riqueza semântica mostra como, na civilização árabe-islâmica, a arte de amar e de dizer atingiu um refinamento admirável, ela também nos permite chegar mais perto do sentimento amoroso e perceber as suas ínfimas variações."
Um precioso antídoto contra a "apagada e vil tristeza" de um final de tarde de domingo.