quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Praia grande

Praia grande
Imagem: Adrião
Licença: Creative Commons



Ao cair da tarde, a praia grande entrega-se à lua oculta, que determina as marés. O areal cresce, húmido, o mar recua. Há alguns mastros dispersos, que hasteiam bóias esquecidas do verão, ao abandono, na ausência de banhistas e nadadores-salvadores, capitães de uma turba que, a tiritar, se debate com uma muralha de ondas em derrocada. Mansas, hoje nem os surfistas acolhem. O olhar navega neste mar desabitado até à linha do horizonte, mar vivo sob a opacidade da superfície, que estremece em permanente transfiguração. As raras figuras sentadas dentro dos automóveis parados ou para lá das vidraças dos cafés parecem estátuas de sal.
Derramam-se as sombras sobre a serenidade da paisagem e dos seres.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Paisagem nocturna

Nas traseiras da avenida, a janela aberta sobre a noite acolhe a mulher que respira o cenário dominado por uma árvore no jardim cercado de plataformas de cimento, onde repousam automóveis sem motores e anexos clandestinos. Absorto no seu carácter vegetal, o jacarandá ignora a voragem da cidade que o estrangula. Um avião cintila, cresce e deixa de existir. No exterior nada mexe, só uma levíssima aragem sacode o espaço e entra sem pôr em desalinho os papéis arrumados sobre a secretária, dar vida às notícias esquecidas nos jornais da véspera ou lançar uma tempestade de areia, que agite as fotografias do deserto, penduradas na parede.
O homem aproxima-se da mulher, agora de costas na moldura vazia da janela, e tocam-se. Fecham-se as vidraças, apaga-se a consciência do lugar na concha da noite, suspende-se o tempo nos relógios que perderam os ponteiros. As narrativas do passado, de que tinham trocado breves excertos, são paralelas. Ambos sabem que a linguagem mistifica o sonho, destorcido pela realidade. Na ferocidade do desejo, na exaltação de um corpo inseparável de outro corpo, em silêncio, a mulher e o homem limitam-se a celebrar o reencontro.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Novembro e Novembro

Trazes nas mãos um ramo de folhas de outono,
essa estação de incandescência e cinza.

Levanta-se a memória a norte,
acorda os lugares onde novembro
despia as árvores, até aos ossos.

Estremece-te o coração
no desassossego dos tempos
confundidos.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Musgo

Há fios de fala a escorrer
pelas paredes da casa, gota a gota
saltam dos olhos cansados
de seguir o movimento dos sonhos,
entranham-se na pele
que o verão amarrotou.

Os dias quebram-se de repente,
a cidade estremece na sombra,
novembro avança
em direcção à luz
mais breve, à intempérie.

domingo, 18 de novembro de 2007

Caravaggio, A conversão de S. Paulo

Caravaggio, A Conversão de S. Paulo, 1601


Que luz é essa
divinamente humana, construída
sobre tela com pincéis e óleos
e o mais que não sei,
que irradia,
transfigura e cega,
e nos persegue por onde o olhar
não vê?

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Modo conjuntivo


René Magritte, A Vitória (detalhe), 1938


Aí está o lugar para onde vais
e não se vê através da porta
deixada entreaberta,
como se amanhã fosses voltar.

Como se toda a mágoa fosse
um conjuntivo, assim a morte,
um trinco mal fechado
que Deus se esqueceu de consertar.

Assim a ausência, uma viagem
planeada em segredo, um recado mudo
no gravador de chamadas,
névoa sobre os risos das fadas,
ecos da infância.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Fogo-de-artifício


Bunker, Magnusum



Há memórias como granadas esquecidas em recantos de nós: debaixo de uma pálpebra durante o sono, no sabor da saliva em momento de fome, no estômago contraído num espasmo sem fim. O corpo transforma-se num abrigo de guerra, fecha-se, nada sabe da lenta mutação da cor das folhas num outono que tarda em chegar, nem da placa metálica do rio, que se confunde com o céu na rasura do horizonte, ignora o desnorte dos passos na repetição sem desvio do mesmo trilho.
São memórias sem matéria, fantasmas, ecos, mares inodoros, gestos sem mãos: como construir uma narrativa que as exorcize?
Dentro do bunker, uma palavra sonâmbula cai sobre os campos minados, a explosão faz do esquecimento um fogo-de-artifício.

Mote : «Aimer c’est s’y méprendre»


Picasso, Minotauro




O que seria: um desafio sem vitórias nem derrotas, o ímpeto de um sorriso, um pacto sem constrangimentos? O que quer que fosse, a mão estava pousada sobre a folha de papel, ela esperava que as palavras chegassem, como por vezes acontecia. Em torrente, o sangue rebentava uma pequena veia e derramava-se na rugosidade do cartão, no ecrã cego, no campo vasto da ausência. Essa era a tinta das emoções sem nome, o fio que conduzia Ariana em sentido inverso, ao encontro do minotauro. Infiltrava-se na distância uma mancha de sons inaudíveis, cobria as areias de Creta uma rede abandonada na fuga de Teseu.
Em que ruído pode transformar-se um rumor, pergunta ela. Em que caos a plenitude. Em que vazio o encontro. Disse, com os dedos distraídos a tentarem construir o «puzzle» com peças misturadas, que provinham de muitas origens: um rumor de pés descalços, a plenitude do tempo suspenso, a vertigem dos corpos unidos contra a morte, sei que a eternidade é esse instante. Esperou ainda, com os olhos acesos na noite, a chegada da voz, um lugar pressentido junto ao mar. Até adormecer na branca luz da madrugada.

domingo, 11 de novembro de 2007

No início da primavera

Há momentos em que a memória irrompe e abrimos gavetas onde as emoções não adormeceram. Na distância de quatro gerações, há uma ponte tão forte que nenhuma palavra é capaz de dizer. Mesmo que a mão pequenina já não possa agarrar a mão longa e bela na extrema fragilidade esculpida pelo tempo, a ponte mantém-se.

Na morte do meu pai, o outono, o início da primavera.


No início da primavera


A semana passada, um dia após o começo da primavera, a minha tia fez oitenta e um anos e os membros disponíveis da família reuniram-se para almoçar: a aniversariante, a minha mãe, o meu pai, o Francisco, a minha irmã e eu. Falta ainda a personagem principal, a Matilde, três anos incompletos e uma acutilância sem idade, que nos acompanhou ao restaurante, o Madeirense, nas Amoreiras, ali mesmo ao lado de casa da «avó Mada», onde já se tinha banqueteado. Sentada à cabeceira da mesa, esteve todo o tempo entretida com um livro recém-adquirido, daqueles ditos educativos, com múltiplas actividades.
No regresso a casa da minha irmã, fomos por dentro do edifício, através da garagem dos condóminos. Entrámos todos no elevador, o meu pai entalado num dos cantos, a mão direita apoiada na bengala, o braço esquerdo caído ao longo do corpo. Ele está muito debilitado, silencioso, cada gesto denota o cansaço dos quase oitenta e cinco anos e a devastação da doença de Alzheimer. De repente, o Francisco exclamou: «Olhem para a Matilde!». Estava ao lado do meu pai, pequenina mas firme, a seiva a correr-lhe apressada sob a transparência da pele e, sem dizer nada, tinha-lhe pegado na mão, como um tronco novo a querer sustentar a velha árvore. Saíram do elevador, atravessaram toda a garagem, um longo percurso para o andar cansado do meu pai, e a Matilde sem lhe largar a mão, acertando os passos ligeiros ao ritmo lentíssimo do bisavô. Como se tivesse adivinhado, sem que ninguém lhe dissesse que ele precisava de apoio, ela estava ali para o amparar. Só lhe largou a mão quando a Mada, com a eficácia organizativa habitual, expediu os três elemento da quarta idade com o Francisco, rumo ao oitavo andar. A Matilde ficou à nossa guarda, no pressuposto de ser a meia-idade a mais assisada, enquanto o bisavô se elevava nas alturas, levado nas asas da tecnologia.
Sem palavras, talvez mesmo sem a consciência muito clara do que se passara, tenho a certeza que ele voou sentindo ainda na mão a mão de um pequeno anjo de carne e osso.
Há momentos assim, de intensa claridade, capazes de rasgar as cortinas que ensombram o coração e de nos reconciliar com a vida.

29/3/2006