domingo, 11 de novembro de 2007

No início da primavera

Há momentos em que a memória irrompe e abrimos gavetas onde as emoções não adormeceram. Na distância de quatro gerações, há uma ponte tão forte que nenhuma palavra é capaz de dizer. Mesmo que a mão pequenina já não possa agarrar a mão longa e bela na extrema fragilidade esculpida pelo tempo, a ponte mantém-se.

Na morte do meu pai, o outono, o início da primavera.


No início da primavera


A semana passada, um dia após o começo da primavera, a minha tia fez oitenta e um anos e os membros disponíveis da família reuniram-se para almoçar: a aniversariante, a minha mãe, o meu pai, o Francisco, a minha irmã e eu. Falta ainda a personagem principal, a Matilde, três anos incompletos e uma acutilância sem idade, que nos acompanhou ao restaurante, o Madeirense, nas Amoreiras, ali mesmo ao lado de casa da «avó Mada», onde já se tinha banqueteado. Sentada à cabeceira da mesa, esteve todo o tempo entretida com um livro recém-adquirido, daqueles ditos educativos, com múltiplas actividades.
No regresso a casa da minha irmã, fomos por dentro do edifício, através da garagem dos condóminos. Entrámos todos no elevador, o meu pai entalado num dos cantos, a mão direita apoiada na bengala, o braço esquerdo caído ao longo do corpo. Ele está muito debilitado, silencioso, cada gesto denota o cansaço dos quase oitenta e cinco anos e a devastação da doença de Alzheimer. De repente, o Francisco exclamou: «Olhem para a Matilde!». Estava ao lado do meu pai, pequenina mas firme, a seiva a correr-lhe apressada sob a transparência da pele e, sem dizer nada, tinha-lhe pegado na mão, como um tronco novo a querer sustentar a velha árvore. Saíram do elevador, atravessaram toda a garagem, um longo percurso para o andar cansado do meu pai, e a Matilde sem lhe largar a mão, acertando os passos ligeiros ao ritmo lentíssimo do bisavô. Como se tivesse adivinhado, sem que ninguém lhe dissesse que ele precisava de apoio, ela estava ali para o amparar. Só lhe largou a mão quando a Mada, com a eficácia organizativa habitual, expediu os três elemento da quarta idade com o Francisco, rumo ao oitavo andar. A Matilde ficou à nossa guarda, no pressuposto de ser a meia-idade a mais assisada, enquanto o bisavô se elevava nas alturas, levado nas asas da tecnologia.
Sem palavras, talvez mesmo sem a consciência muito clara do que se passara, tenho a certeza que ele voou sentindo ainda na mão a mão de um pequeno anjo de carne e osso.
Há momentos assim, de intensa claridade, capazes de rasgar as cortinas que ensombram o coração e de nos reconciliar com a vida.

29/3/2006

2 comentários:

Unknown disse...

Carissima~

Penso que é de toda a pertinencia este seu blog. Irá certamente ser um local importante a visitar.
Abraço

Selenite disse...

Obrigada pelo incentivo! Espero que este seja um espaço onde apeteça vir.