quarta-feira, 30 de junho de 2010

Sem coreografia

No rectângulo recortado sobre o ilimitado virtual, o espaço - e já não a folha de papel - (em) branco é um interlocutor mudo que desata as palavras. Escorregam da garganta, descem os braços, chegam às mãos e libertam-se dos meus dedos inconstantes sobre o teclado. São bailarinas sem barra que não conhecem coreografia.

As palavras no verão

Os dias estão cheios de palavras. Circulam nos automóveis e transpiram nos transportes públicos. Caminham rente às paredes dos prédios à procura de breves sombras. Cruzam-se umas com as outras sem se reconheceram. Aproximam-se do rio como quem procura um espelho ou o silêncio. Às vezes, juntam-se em frases sem fim e sem sentido, felizes por se tocarem, se empurrarem, tropeçarem e se transformarem em riso.

domingo, 27 de junho de 2010

Arraial

No quintal que já foi um jardim, esmagado por partilhas e por um prédio cor-de- rosa, sento-me perto da buganvília. Com a noite vem um vento frio, que arrepia a pele e apaga as velas colocadas sobre as mesas do arraial. Procuro o tanque de pedra que já não existe. Com um novelo de memórias tricoto um xaile que me protege das palavras de circuntância.

sábado, 26 de junho de 2010

A nós a noz

Há um pronome pessoal sujeito interdito. Levanto-me da secretária, tiro o livro da estante, coloco-o sobre uma tábua, vou buscar um martelo pequeno, dou uma pancada certeira na Gramática. Abre-se a noz.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

À maneira de Chagall

Num dos pratos de uma balança, a mulher pôs palavras, muitas palavras de que já nem sabia o significado. Depois subiu para o outro prato da balança e ficou à espera. As palavras ficaram rentes ao chão e o corpo dela voou por cima da cidade.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Ângulo obtuso

O que nos aproxima está apenas milimetricamente distante do que nos afasta: um imperceptível tremor nos lábios, que desmancha o sorriso; um silêncio a roer o estilhaço de uma gargalhada; um pé que esboça o ângulo do passo em sentido contrário. O beijo esquecido na boca, a mudez, a solidão invadem o corpo, a casa, a rua onde nenhuma esquina se adivinha.

sábado, 12 de junho de 2010

Bomba-relógio

Para C.

Só a noite acolhe e transfigura o diálogo que se projecta no ecrã e cresce em múltiplos sentidos. As palavras procuram reconhecer as vozes que as modelam, o desejo que as faz vibrar, a vertigem inscrita na mudez branca. Cada frase é uma bomba-relógio que a ordem vigilante tem por missão desactivar.
Cai o silêncio sobre o palco virtual e os corpos distantes unem-se no mais improvável dos abraços.

domingo, 6 de junho de 2010

Destino

Olhei com curiosidade as pessoas com quem me cruzei hoje de manhã no aeroporto. Tinham um ar determinado de viajante com bilhete comprado e passaporte sem prazo de validade. Dirigiam-se para o "check in" e para as portas de embarque com a certeza de quem voa para o único destino possível, de quem constrói o próprio destino. Encaminhei-me para os elevadores, carreguei no botão "menos dois" com a sensação de quem se precipita no abismo enquanto Ícaro se eleva nos céus.

O largo

Gosto do largo, do pequeno jardim com o banco vazio, e as árvores que dormem. Gosto deste rumor que faz estremecer a noite, e embala o meu canto da cidade.

A noite

O corpo da noite tem as medidas da janela do quarto. O vento empurra as vidraças e estilhaça a moldura que continha a escuridão. A noite invade todo o espaço, a pele dilatada pelo sopro que vem do mar cola-se às paredes, à roupa deixada nas costas da cadeira, à cama por fazer. Ao tocar a lâmpada acesa do candeeiro, rebenta. No soalho luzem pedaços de balão.