sábado, 25 de dezembro de 2010

À memória tão viva da minha Mãe

LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito 

David Mourão-Ferreira

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Contracorrente

O absurdo não é morrer. Mais absurdo do que estar vivo, só acreditar na imortalidade.

domingo, 7 de novembro de 2010

Prémio Dardos

Porfírio Silva, querido amigo, presenteou-me, na Machina Speculatrix , com o inimaginável: um "prémio" pelas palavras que vou atirando para o ciberespaço, como quem sacode o pó. O pó sobre as fotografias e nos lençóis amarrotados, o pó das coisas  e dos lugares que se confundem na memória, o pó que é preciso libertar antes que se agarre à pele suada e a sufoque, poro a poro. Este blogue é, por isso, um movimento de respiração, um gesto descuidado de sobrevivência. Que alguém o prolongue e o transforme é, mais do que um prémio, uma alegria!

Deambulo, quando posso e me apetece, por variados blogues, mas confesso que não sinto que lhes deva fidelidade.  É um percurso leve e leviano. Dito isto, faço meu o propósito do Porfírio: "Tenho, para dar um mínimo cumprimento às regras do Dardos, de indicar outros blogues para o mesmo fado. Serão poucos, que a crise é grande. Mas lá vai:"

Machina Speculativa
http://apps.facebook.com/blognetworks/blog/machina_speculatrix
Horas Extraordinárias
http://horasextraordinarias.blogs.sapo.pt/
Pó dos livros
http://livrariapodoslivros.blogspot.com/2010/04/diario-da-bicicleta.html
Tim Tim no Tibete
http://timtimnotibet.blogspot.com/

Amanhã, quem sabe se serão outros !...

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sentido(s)

   Em cada encontro há sempre palavras que ficam por dizer, que se vão desfazendo em sílabas e sons, na saliva. Dicionários e gramáticas pairam sem rumo, perdida a gravidade com o objecto que lhes conferia peso. A torre de Babel pode ser a nossa tenda de harmonia, quando se acendem, ardem e confundem todos os sentidos.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Culinária

Apenas escrevo para dizer o que penso e sinto (eu penso com a emoção). As palavras vão-se juntando sem me pedirem licença. Sou uma cozinheira amadora que mistura os ingredientes e põe a massa no forno. Muitas vezes, o bolo sai esturricado e voa para o caixote do lixo. Que surpresa, quando alguém se deixa seduzir pelo aroma que se espalha pela cozinha e aprecia o paladar!

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A mãe

Do lado em que um filho nos fala cresce o lóbulo da orelha, palavra a palavra, até se transformar em bolsa marsupial.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Hesitação

Perdida em mim ou perdida de mim: hesito entre duas preposições ou entre dois universos?

domingo, 4 de julho de 2010

Quarto crescente

Quero que o meu lado lunar tenha  a intensidade do quarto crescente inclinado sobre o rio, esta noite, em Lisboa.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Sem coreografia

No rectângulo recortado sobre o ilimitado virtual, o espaço - e já não a folha de papel - (em) branco é um interlocutor mudo que desata as palavras. Escorregam da garganta, descem os braços, chegam às mãos e libertam-se dos meus dedos inconstantes sobre o teclado. São bailarinas sem barra que não conhecem coreografia.

As palavras no verão

Os dias estão cheios de palavras. Circulam nos automóveis e transpiram nos transportes públicos. Caminham rente às paredes dos prédios à procura de breves sombras. Cruzam-se umas com as outras sem se reconheceram. Aproximam-se do rio como quem procura um espelho ou o silêncio. Às vezes, juntam-se em frases sem fim e sem sentido, felizes por se tocarem, se empurrarem, tropeçarem e se transformarem em riso.

domingo, 27 de junho de 2010

Arraial

No quintal que já foi um jardim, esmagado por partilhas e por um prédio cor-de- rosa, sento-me perto da buganvília. Com a noite vem um vento frio, que arrepia a pele e apaga as velas colocadas sobre as mesas do arraial. Procuro o tanque de pedra que já não existe. Com um novelo de memórias tricoto um xaile que me protege das palavras de circuntância.

sábado, 26 de junho de 2010

A nós a noz

Há um pronome pessoal sujeito interdito. Levanto-me da secretária, tiro o livro da estante, coloco-o sobre uma tábua, vou buscar um martelo pequeno, dou uma pancada certeira na Gramática. Abre-se a noz.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

À maneira de Chagall

Num dos pratos de uma balança, a mulher pôs palavras, muitas palavras de que já nem sabia o significado. Depois subiu para o outro prato da balança e ficou à espera. As palavras ficaram rentes ao chão e o corpo dela voou por cima da cidade.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Ângulo obtuso

O que nos aproxima está apenas milimetricamente distante do que nos afasta: um imperceptível tremor nos lábios, que desmancha o sorriso; um silêncio a roer o estilhaço de uma gargalhada; um pé que esboça o ângulo do passo em sentido contrário. O beijo esquecido na boca, a mudez, a solidão invadem o corpo, a casa, a rua onde nenhuma esquina se adivinha.

sábado, 12 de junho de 2010

Bomba-relógio

Para C.

Só a noite acolhe e transfigura o diálogo que se projecta no ecrã e cresce em múltiplos sentidos. As palavras procuram reconhecer as vozes que as modelam, o desejo que as faz vibrar, a vertigem inscrita na mudez branca. Cada frase é uma bomba-relógio que a ordem vigilante tem por missão desactivar.
Cai o silêncio sobre o palco virtual e os corpos distantes unem-se no mais improvável dos abraços.

domingo, 6 de junho de 2010

Destino

Olhei com curiosidade as pessoas com quem me cruzei hoje de manhã no aeroporto. Tinham um ar determinado de viajante com bilhete comprado e passaporte sem prazo de validade. Dirigiam-se para o "check in" e para as portas de embarque com a certeza de quem voa para o único destino possível, de quem constrói o próprio destino. Encaminhei-me para os elevadores, carreguei no botão "menos dois" com a sensação de quem se precipita no abismo enquanto Ícaro se eleva nos céus.

O largo

Gosto do largo, do pequeno jardim com o banco vazio, e as árvores que dormem. Gosto deste rumor que faz estremecer a noite, e embala o meu canto da cidade.

A noite

O corpo da noite tem as medidas da janela do quarto. O vento empurra as vidraças e estilhaça a moldura que continha a escuridão. A noite invade todo o espaço, a pele dilatada pelo sopro que vem do mar cola-se às paredes, à roupa deixada nas costas da cadeira, à cama por fazer. Ao tocar a lâmpada acesa do candeeiro, rebenta. No soalho luzem pedaços de balão.

domingo, 30 de maio de 2010

Entre-as-Praias (Grande e das Maçãs)

Empurradas pelo vento do entardecer, as nuvens filtram a luz que se derrama sobre o mar. São esses os únicos espelhos em que reconheço fragmentos da face de Deus.