sábado, 11 de junho de 2011

Miragem

De repente, os gestos e as palavras expõem-se ressequidos na fotografia da mulher. As frágeis raízes da alegria, para avançarem por baixo da pele, se emaranharem nos nervos e sufocarem a tristeza da carne, reclamaram a água que não há. O oásis é uma miragem que a sede amplifica até o desejo ensurdecer. O deserto em volta, em todos os lugares, aperta o abraço fiel da solidão.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Memento mori (título roubado a um poema de L.F.C.M.)


          ...
          Nós nunca vemos ninguém morrer,
          Porque morrer é por dentro de cada um,
          Como talvez tudo o que tenha algum sentido,
          Como talvez o amor.
          …
          Luís Filipe Castro Mendes, Lendas da Índia

     Quase seis meses depois, é altura de te dizer o que não vais ouvir: só se ouvem as palavras por dentro de cada um, como talvez tudo o que não tem sentido, como talvez a morte. Sentei-me na cadeira ao lado da tua cama, peguei-te na mão e disse-te coisas acidentais, mas que eu sabia serem definitivas. Não deste nenhum sinal de que me entendias, talvez por isso eu as dissesse como se fosses a minha filha pequena e eu a tua mãe carinhosa. Talvez tenha dito que já era noite, que tinhas a pele bonita, que havia muito trânsito lá fora. Tocar-te a face, segurar a tua mão durante horas, era o último e primordial contacto e soube que não era impossível que me sentisses ali, apesar da grande ausência que rodeava já o teu corpo e te levava, a pouco e pouco, para onde o amor não pode chegar. 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

As vozes dos amigos

à Guida M.
Do arco tenso e flexível de todos os dias partem as vozes dos amigos. Cravam-se em uníssono no coração da maçã. São a rosa sem espinhos pousada na tua mão.

sábado, 25 de dezembro de 2010

À memória tão viva da minha Mãe

LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito 

David Mourão-Ferreira

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Contracorrente

O absurdo não é morrer. Mais absurdo do que estar vivo, só acreditar na imortalidade.

domingo, 7 de novembro de 2010

Prémio Dardos

Porfírio Silva, querido amigo, presenteou-me, na Machina Speculatrix , com o inimaginável: um "prémio" pelas palavras que vou atirando para o ciberespaço, como quem sacode o pó. O pó sobre as fotografias e nos lençóis amarrotados, o pó das coisas  e dos lugares que se confundem na memória, o pó que é preciso libertar antes que se agarre à pele suada e a sufoque, poro a poro. Este blogue é, por isso, um movimento de respiração, um gesto descuidado de sobrevivência. Que alguém o prolongue e o transforme é, mais do que um prémio, uma alegria!

Deambulo, quando posso e me apetece, por variados blogues, mas confesso que não sinto que lhes deva fidelidade.  É um percurso leve e leviano. Dito isto, faço meu o propósito do Porfírio: "Tenho, para dar um mínimo cumprimento às regras do Dardos, de indicar outros blogues para o mesmo fado. Serão poucos, que a crise é grande. Mas lá vai:"

Machina Speculativa
http://apps.facebook.com/blognetworks/blog/machina_speculatrix
Horas Extraordinárias
http://horasextraordinarias.blogs.sapo.pt/
Pó dos livros
http://livrariapodoslivros.blogspot.com/2010/04/diario-da-bicicleta.html
Tim Tim no Tibete
http://timtimnotibet.blogspot.com/

Amanhã, quem sabe se serão outros !...

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sentido(s)

   Em cada encontro há sempre palavras que ficam por dizer, que se vão desfazendo em sílabas e sons, na saliva. Dicionários e gramáticas pairam sem rumo, perdida a gravidade com o objecto que lhes conferia peso. A torre de Babel pode ser a nossa tenda de harmonia, quando se acendem, ardem e confundem todos os sentidos.